sexta-feira, 25 de março de 2011

Como a Empresa Pode Contagiar o Profissional

Marcelo Simas de Lima



"Gostaria de chamar a atenção para o que ocorre na empresa quando a dignidade é desconsiderada e as pessoas são coisificadas. Como se dá o ajustamento humano- numa empresa que não permite a vivência dos impulsos? Observamos características fundamentais:



· Desperdício de energia. Na medida em que toda a energia está concentrada nos impulsos, e se eles não encontram lugar no papel, a energia, é obviamente desperdiçada.

· Estresse. Se a energia não encontra espaço no papel, ela fica no organismo. Quem vai pagar a conta? A musculatura lisa. A musculatura que o homem não controla. Toda a carga energética será descarregada nas vísceras, estômago e intestino, nas artérias etc. Haverá um leque de patologias que irão desde as somatizações, isto é, alterações da função como dor de cabeça, gastrite, até as doenças psicossomáticas, isto é, alterações da estrutura - como úlcera e infarto."



Começo esse artigo citando Paulo Gaudencio até para explicar ao leitor o que faço aqui, afinal de contas, quem espera que um cirurgião do aparelho digestivo faça parte de uma equipe preocupada com a saúde de uma empresa? Isso mesmo, ninguém. E de fato eu não faço parte, estou aqui por pura curiosidade frente a uma observação clínica que começou com o atendimento em meu consultório. Eu explico: meu consultório está localizado na rua Itapeva, bem próximo da avenida Paulista, grande centro financeiro que dessa forma foi atingida em cheio pela crise internacional. Na minha amostragem de pacientes esse tufão parece ter sido mais forte, é que atendo muitos funcionários de um grande banco americano: o que para eles era um ótimo emprego, sinônimo de credibilidade e estabilidade, passou a ser uma grande incerteza. Culpa do banco? Muitos se anteciparão e dirão que não, já que a crise é mundial e os créditos "subprimes" aparentemente estavam disseminados em vários níveis da economia americana.



Mas o que pensar quando muitos desses meus pacientes, alguns portadores de patologias crônicas já há tempos controladas sem muita dificuldade, voltam com intensa recrudescência dos sintomas. Outros evoluem com sintomatologia inteiramente nova, alguns "sintomas médicos inexplicáveis" surgem e ainda, uns poucos, que há tempos eu tentava convencer se beneficiariam de uma intervenção cirúrgica, mas que sempre se mostraram relutantes diante da possibilidade de uma operação agora aparecem, depois de faltar ao último retorno agendado, determinados a se submeterem ao procedimento, porém já negociando o ganho secundário de alguns dias a mais de afastamento do serviço.



Tratei de doença do refluxo gastroesofágico, antecipando exames endoscópicos de controle programados para o futuro somente para acalmar pacientes ansiosos; vi quadros previamente controlados de síndrome do intestino irritável saírem de controle mesmo com doses maiores do que as anteriormente utilizadas, operei a vesícula biliar de alguns portadores de colelitíase que antes preferiam ignorar os riscos do problema, tratei de fissuras anais crônicas que reabriram após anos cicatrizadas.



Esse é o cenário: crise financeira mundial, um grande banco com um grupo de funcionários mais que selecionados, muita incerteza e ansiedade, com um toque final, a cereja em cima do bolo: uma clara situação de negligência emocional institucional. O tema crise financeira nunca fez parte das discussões do banco, foi sempre conversa de bastidores, falada em tom mais baixo e olhares atentos para todos os lados, além é claro de notícia dos telejornais vespertinos, 'quando os mesmos funcionários chegavam em casa para relaxar com a família após um dia de trabalho. Depois seguiram-se os cortes e, atualmente, o aumento na carga de trabalho dos que ali resistem. Não dava para ser uma simples coincidência, eram muitos raios num mesmo lugar, uma tempestade.

Resolvi estudar. A internet facilita muito nosso acesso à informação.



Somatização foi a primeira palavra que me veio a cabeça, foi então a primeira na minha busca. No Medline, ferramenta de busca médica na internet, a palavra somatização está associada a trabalhos predominantemente da área da psiquiatria, respondendo por mais da metade deles, seguida de estudos de neurologia e, finalmente, gastroenterologia. As demais especialidades como reumatologia e cardiologia, entre outros, seguindo bem atrás nesse "ranking" de número de trabalhos. Uma luz se acendeu. Não é a toa que alguns autores chamam o trato digestivo de segundo cérebro, depois do sistema nervoso central, é o local de maior concentração de tenpinações nervosas e, também por isso, alvo frequente dos transtornos somatoformes e doenças psicossomáticas.



A somatização é uma forma de manifestação do sofrimento emocional que pode ser motivado por diferentes quadros psicopatológicos ou, na ausência deles, pela tristeza, dor, insatisfação, inadequação ou incapacidade diante de um quadro além do nosso controle.



Antigamente era encarada de forma mais abrangente como a interferência do cérebro sobre o corpo, essa figura ainda é muito utilizada nos consultórios para explicar aos pacientes as possíveis origens não orgânicas de seus distúrbios, mas a aplicação clínica dessa forma de entendimento é limitada. Classificar para entendere poder tratar, esse é o caminho seguido em muitas especialidades médicas diante dos quadros ainda pouco compreendidos.



Evoluímos no entendimento da somatização e classificamos os somatizadores em três grupos: os somatizadores de apresentação, os funcionais e os hipocondríacos. Esses últimos são uma classe à parte, se apresentam com ideia persistente de que os sintomas somáticos normais são sinais de doença específica, quase uma obsessão.



Os somatizadores de apresentação são os mais frequentes, são os pacientes que, a despeito de seus conflitos emocionais evidentes, procuram auxílio médico por queixas físicas, frequentemente queixas gastrointestinais, mas que reconhecem prontamente o conteúdo psicossocial de seus problemas somáticos quando essa hipótese é sugerida. A associação com distúrbios de ansiedade e depressão é frequente. A queixa física objetiva é mais aceita pela sociedade, e pelo próprio paciente, quando confrontadas com queixas emocionais. Aceitamos com maior naturalidade quando um colega nos conta que foi ao gastroenterologista por uma gastrite crônica do que quando ele nos diz ter passado no consultório do psiquiatra para tratar sua ansiedade.



O estigma do distúrbio psiquiátrico ainda é muito grande, mesmo na nossa sociedade urbana e "moderna".



Os somatizadores funcionais diferem dos de apresentação pela sua resistência em reconhecer a natureza emocional de suas queixas físicas. As queixas somáticas estão de tal maneira arraigadas que o paciente não consegue interpretá-Ias de outra maneira. Geralmente apresentam comprometimento funcional com quadros mais crônicos e chegam no consultório trazendo um pilha de exames negativos e ansiosos pelo diagnóstico/tratamen to definitivos. É muito frustrante cuidar das queixas somáticas desses pacientes; pois, nas raras vezes em que se consegue o controle do quadro, há tendência de troca de sintomas surgindo uma queixa inteiramente nova mas que comprometea qualidade de vida na mesma intensidade dos problemas prévios.



Ao evitar o estigma psiquiátrico os pacientes procuram diferentes especialidades médicas, movimentando os consultórios em urra proporção mais ou menos semelhante à encontrada no "ranking" dos trabalhos citados.



Diante do desafio representado por eles as especialidades médicas têm se organizado e identificado novas patologias ou classes de distúrbios, em um nítido esforço para classificar e entender. Destacamos aqui alguns novos diagnósticos que, em graus diferentes, se beneficiam da associação de antidepressivos em seu tratamento:



a fibromialgia na reumatologia, a síndrome da fadiga crônica na clínica médica, a síndrome do intestino irritável e os demais distúrbios funcionais do aparelho digestivo identificados pelos critérios de Roma, já na sua terceira edição. Essas novas categorias de doenças entendidas como alterações funcionais mantém o paciente em contato com o médico, fortalecendo uma relação capaz de conseguir o alívio dos sintomas, evitando menosprezo por parte dos profissionais que passam a entender essa condição como algo a ser estudado, tratado e levado a sério e, a supervalorizaçã o por parte dos doentes que de incompreendidos passavam a se considerar aberrações com patologias estranhas e ficavam tomados de pavor com os sintomas que só tendiam a se agravar.



Me estender sobre os critérios de Roma e os distúrbios funcionais do trato digestivo, minha área de atuação, exigiria outro artigo e eu não entendo que seja esse o objetivo.



Vale, sim, falarmos sobre o conceito de ampliação somatossensorial: as experiências da infância influenciam o comportamento perante a dor. Igualmente há grande influência das atitudes dos pais sobre a criança: algumas famílias ficam alarmadas com pequenos golpes e contusões insignificantes, enquanto outras têm tendência a dar pouca atenção a ferimentos de certa gravidade. As observações levam a pensar que as atitudes perante a dor, adquiridas na infância, persistem na idade adulta.



O grau de atenção, ansiedade, distração influenciam no sistema da dor. Se uma pessoa foca a atenção numa situação potencialmente dolorosa, tende a sentir dores mais intensas do que o normal. A expectativa da dor é o bastante para aumentar a ansiedade e consequentemente a intensidade dela. E, quando se acalma a angústia, a percepção dolorosa para um determinado estímulo é menor do que no estado de acentuada intensidade.



Em contraste com o efeito amplificador da atenção e estresse sobre a dor, a distração pode diminuí-Ia ou até aboli-Ia. Estudos antropológicos demonstraram que a dor não depende exclusivamente do grau de lesão orgânica. Sua intensidade é também influenciada pelas experiências anteriores, suas recordações e consequências. Assim se explica, pelo menos em parte, porque lutadores, futebolistas e outros atletas, às vezes feridos durante a competição, prosseguem a disputa sem se queixarem do seu estado.



A reação fisiológica de alarme a uma condição de risco, ou seja, a um fator de estresse, é chamada de síndrome geral de adaptação. Dividida em três fases: reação inicial de alarme, fase de resistência e fase de exaustão. Portanto as reações ao estresse são fruto de um esforço de adaptação e, se na fase inicial, a da reação de alarme, nossa sensibilidade à dor pode até diminuir, é na progressão para a fase de exaustão que os somatizadores chegam aos consultórios médicos.



Na cultura empresarial sobressaem valores objetivos e impessoais, isto é, o pragmatismo dos objetivos de produção e crescimento, não contando com os impulsos' humanos enfatizados pelo Paulo Gaudencio na citação inicial. Interessam habilidades específicas para cumprir deveres específicos isolando sua carga afetiva desse contexto de trabalho. Assim a relação indivíduo empresa é marcadamente incompleta, o indivíduo não é todo completo, há uma cisão do comportamento: de um lado a força de trabalho, seguindo as regras estabelecidas pela empresa, de outro as emoções nem sempre em congruência com essas regras e vivências.



Estabelece-se uma relação que pode até parecer lucrativa inicialmente, mas não será duradoura e se baseará em remuneração financeira como único elo de manutenção.

Há que se considerar também o grupo, grandes organizações trabalham em equipes que, como grupo, se comportam e vivem em um equilíbrio definidor da entidade única, um organismo vivo dependente das interrelações de seus membros. Um membro amputado ou disfuncionalizado impacta no grupo todo.



Assim considero completada a missão que estabeleci como ponto de partida: entender o mecanismo de desenvolvimento de doença que afetava tantos pacientes ao mesmo tempo. Os mecanismos da somatização, psicossomática e da amplificação da dor explicam como a síndrome geral de adaptação pode acabar induzindo manifestações físicas em membros de um grupo de trabalho em que ocorra intensa e persistente estimulação de estresse, além disso, entendi como a relação contratual incompleta entre o funcionário e a empresa e as rupturas no grupo formado catalisam esse processo.



Tratar a empresa certamente não implica o indivíduo, mas, sem dúvidas, é promoção de saúde previnindo o surgimento de outras, e ganhando em produtividade.



O homem moderno produz e consome muito além de suas necessidades básicas, o trabalho não existe para o homem, mas o homem para o trabalho. Agora pesa sobre nós o impacto ambiental dessa organização social de consumo e produção excessivas.



Encerro com outra citação: "O ser humano é capaz de adaptar-se ao meio ambiente desfavorável, mas esta adaptação não ocorre impunemente" (Levy 1971).



Marcelo Simas de Lima é Médico formado pela Faculdade de Medicina da USP.

Membro titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD] e da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED). Atua nos hospitais Beneficência Portuguesa e Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP).

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